31.3.25

Convite para o lançamento do meu novo livro

                                        


Às minha Amigas e aos meus Amigos, a todos os que gostam da minha poesia convido para virem ao lançamento do meu novo livro.
Deixo-vos o poema que dá título ao livro:


Antes das grandes sedes
já um deserto ameaçava
nossas bocas
ávidas do frescor dos frutos.
Meu amor
talvez haja amoras maduras
à entrada da noite.

Graça Pires

24.3.25

Em seara alheia

 





PALAVRAS DE TI

Quero que escrevas
que digas
que grites no papel
que desates o cordel
e consigas
tirar-me esta sede
de palavras
de ti

Carlos Campos
In: Nuvem que passa devagar. Modocromia, 2024, p. 44

17.3.25

Semana comemorativa do Dia Mundial da Poesia

 A convite da Amiga Rosélia aqui deixo a minha participação:



Quero a poesia, ainda que imperfeita, mas que fale de amor.
Que diga o corpo inteiro, antevendo o júbilo das mãos.
Que diga a boca adjacente à boca, e os olhos em festa,
e a lua ardendo atónita nas veias.
Poesia onde doa a ausência dos abraços, 
onde se redima a mendicidade do olhar.

Graça Pires

8.3.25

ELAS

Tamara Lempicka   
                                                      
           


Elas têm olhos de vespa como as antigas deusas
e mordem o freio que lhes sangrou os lábios.
Fazem minuciosamente o inventário dos sonhos
esmagados na lembrança.
As paredes das casas com marcas de fumo
guardaram-lhes os gritos quando queimaram
as cartas de amor e o alecrim para afastarem
os fantasmas do passado parados à beira da insónia.
Agora turva-se-lhes a água no quebranto das horas
que a vigilância dos relógios e dos homens
tornam fatigantes.
Às vezes ficam deitadas horas a fio no chão
de cimento afagando o dorso do gato
que febrilmente se enrosca em suas ancas.

Graça Pires
De A incidência da luz, reeditado

Se gostarem de ouvir o poema podem fazê-lo aqui:

                                       https://youtu.be/Dw-Cz18D4Zg

24.2.25

O aceno da sede

 

Katharina-Jung



Resgato o trémulo aceno da sede
com um deserto furtivo na boca.
Roço com deleite os lábios no chão.
Até enraizar a língua na água
de qualquer nascente.
Fenda de um grito
na melancolia dos lábios.
Pranto caudaloso no sangue das mães.


Graça Pires
De Improviso de viver, 2023, p. 23

17.2.25

Lugares sagrados

 

Silena Lambertini

                                                               Para o Samuel Pimenta



Abençoado por rituais que decifram
tudo o que está para além de tudo
ele reconhecia os lugares sagrados.

Na demanda de árvores prenhes de luz
escutava a voz úbere da terra
e o cântico subterrâneo das fontes.

Sobre a humidade da folhagem
vêm agora aves solares
em silenciado voo purificar-lhe os passos
com rasgos de confidência
para que sempre lhe pertença
a simbologia e o culto dos lugares.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p.45

10.2.25

Em seara alheia

 




Desenhar um poema

Hoje queria desenhar um poema
com linhas e traços ausentes
e nele ler
esquecimento

Ana T. Freitas
In: A coragem da cor. São Paulo: Editora Conejo, 2024p. 44

3.2.25

À passagem de pássaros rubros

 

Daria Petrilli



Deixo que um brado demente 
me atravesse o coração 
à passagem de pássaros rubros 
na periferia dos meus olhos 
e me rasgue na garganta uma fenda 
que atravesse os lugares calados 
onde se escondem bichos,
ervas bravas e o hálito húmido da terra.
Sem rumor, a mais íntima sombra 
propaga a suspeita 
de uma paisagem longínqua 
de onde me ausentei 
quando a extinção dos amores-perfeitos
contornou a minha solidão.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p.64

27.1.25

As mulheres trancam-se em casa

 

                                                                   Andrea-Kowch                         


Quando a humidade faz crescer o musgo 
na extremidade dos muros
e o bolor começa a entranhar-se 
nos móveis e nos ossos, 
as mulheres trancam-se em casa 
para recordar lutos antigos 
e gizar o exílio das flores em seu colo, 
como se habitassem todos os gestos 
que as ligam à vida e à morte.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 74

20.1.25

Em revolto espanto

 

Rembrandt


Era fluvial o brilho dos meus olhos
em revolto espanto à procura do mar
que brandia no meu peito.

Eu vi a tempestade em redor dos barcos
e lamentei cada náufrago pelo nome completo.

Há nódoas de sangue
nas conchas dispersas no areal.
Há um choro submerso
entoado pelos búzios
no bramir das ondas.
São perigosos os limos vermelhos
trazidos por ventos de sal.

Um frio inesperado
fere as sombras dos pássaros
sobre as encostas
e o leito das mulheres nos panos da noite.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p.48

13.1.25

Em seara alheia

                      



Solstício de inverno

Tudo se anima já: os pomos nas árvores,
os arqueólogos-melros procurando no chão
os seus ninhos antecipados.
Do canto das toutinegras brilham sinais,
convencendo-nos de que as trevas perderam.
Dos mortos, já quase nada se sabe.
Dos vindouros, uma esperança apenas.
E, no entanto, há uma promessa a rastejar
entre os grãos de areia, um rumor de vermes
com sede de superfície. Pressente-se
que alguém virá anunciá-lo.
A ousadia dos profetas, porém mete-nos medo.
Ainda é cedo, um pouco cedo
para algo mais do que um segredo.

Luís Palma Gomes
In: Cálculo das impossibilidades. Edição de autor, 2024, p. 16

6.1.25

Num pressentimento feliz

 

António Dacosta



Num pressentimento feliz,
recebo de mãos abertas 
a inexprimível conivência 
das palavras.
Arrasto-me até à nitidez 
de uma primitiva sílaba.
Transformo a memória 
em pretextos vocabulares, 
em monólogos, 
em mortificado sobressalto.
Preencho o vazio dos espaços 
com pequenas doses de silêncio. 
Não há lugar para a estranheza 
da página em branco, 
a denunciar a aridez do verbo. 
Sei como é áspero o mutismo 
que atravessa a língua 
em movimento curvo 
até tornar absurda a linguagem.
Como se tangesse uma guitarra nocturna, 
consinto que me invada 
a taciturnidade do anoitecer. 
Direi então que as palavras têm sombra 
nas páginas deste texto onde fixei a minha voz 
para deixar passar antígona 
despida de pudor, em dementada inocência.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 54

15.12.24

Menino Deus

 


Ninguém o viu nascer.
Mas todos acreditam que nasceu.
É um menino e é Deus.

Miguel Torga







Recortemos das nuvens

aves brancas que rasguem o azul do céu

com um voo de paz sobre o mundo.

 

UM NATAL CHEIO DE BÊNÇÃOS

UM ANO DE 2025 COM SAÚDE E CONFORTO JUNTAMENTE COM TODA A FAMÍLIA.


Volto em Janeiro

9.12.24

Interação fraterna de Natal 2024

A convite da Amiga Rosélia aqui deixo a minha participação  nesta fraterna interacão de Natal





Foi em Belém que se cumpriu o milagre 
do teu nascimento, Menino Jesus.
O mistério da luz que há em nossos sonhos 
nasce no teu presépio, onde todos os dias 
amamos a presença do Universo inteiro 
na idade infinita da infância.
Nasceste em todos os lugares do mundo:
nas montanhas, em cada rio, 
no litoral, na planície, nos desertos, 
em todas as casas.
Ajoelhamo-nos sobre a terra 
por sabermos que o lugar 
onde verdadeiramente nasces 
todos os anos é no nosso coração.

Graça Pires
 
Desejo um Natal de Amor
e um novo ano de Paz.


2.12.24

Memória dos sentidos

Ana Pires Livramento




Olho para além dos sinais visíveis do horizonte.
Há um caos na trama dos dias apressados.


O pão há muito não tem o sabor da seara.
No verão o aroma dos figos e da urze
já não transpõe a ombreira da porta.
Nos muros caiados a violência do sol
atinge o olhar incauto dos que amam as sombras.
As vozes caladas das mulheres são um áspero bulício
contra as casas com frinchas nas janelas.
Nas mãos de toda a gente lateja um ritmo veloz
um impulso extraviado um gesto evasivo.

Instantes que perturbam a incerta imensidade do tempo.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 10

25.11.24

Em seara alheia

                           


Olho-te

Olho-te e o outono acontece.
Sonhos que não realizámos...
iluminam o teu olhar.
Sonhos quietos, ideais, paisagens
de um ser pós-Moderno à deriva.
Fragmentação e ilusão que velejam
num mar interno e pesado...
A peste, as guerras, quiçá, a fome
espreitam nas noites em que vagueias.
Os predadores afoitam-se nas esquinas
e as urbes esfriam o bafo do verão.
Olho-te e outono acontece
no teu passo mais lento,
no teu olhar mais terno.
Sonharemos juntos, este inverno!

Ana Tapadas
In: Sul Sereno. Lisboa: Europa Editora, 2024, p. 18

18.11.24

Atraem-me os astros

                                    

NASA



Atraem-me os astros em mutação constante. 
Como um tempo sem limite na espuma do momento, 
a procurar a densidade da luz e das trevas 
onde se extinguem os dias. 
A vibrar na estreita linha da existência, 
leve como a mais leve nuvem. 
Sem tocar a idade do rosto que me pertence.
Um universo quase encenado na dimensão da vida.
Talvez uma chama desarmante entre os lábios 
me deixe ver o princípio de quem sou 
e a cintilação da luz implacável 
presa no equinócio de outono 
a entoar, em pluviosa melodia, 
em aflição cósmica, 
a nítida possibilidade da madrugada em que nasci. 
A agitação da terra e do firmamento 
pode ser a denúncia ou o aviso 
de que o perfume das flores 
me cegará no instante de morrer.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 30

11.11.24

No branco baço dos crisântemos



Um súbito enredo trespassa o olhar 
em descritivas formas. 
A nitidez do silêncio persegue os lábios. 
Decifra as palavras inefáveis. 
Ardor em sangramento na língua. 
Mistura de linfa e de terra 
no branco baço dos crisântemos. 
A tracejar de nostalgia a memória desfocada 
dos lugares no litoral da infância. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p.8

4.11.24

Pouco a pouco

                               

Erin Fetterhoff



Fotografia em negativo.
O inverso das cores.
A imagem da imagem
na impossível inclinação
do brilho sobre o tempo.

Pouco a pouco emudeceram
os nomes ausentes da vida.
Nomes demorados na voz
que perduram na suspeita
do olhar do riso do pranto.

Feridas visíveis na luz.
Flores do luto.
Lugares vazios.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 54

28.10.24

Em seara alheia

                             

Camarinhas

Segui-te pelas veredas
para me dares a provar
as bagas brancas do bosque.

Desejava os refúgios silvestres
a caruma a suster-nos os corpos
e a longa distância da civilização
à espera de podermos revelar
as pérolas ocultas
nas nossas bocas.

E na surdina do tacto sabermos
que as coisas mais preciosas
só afloram nos lugares furtivos.

Samuel F. Pimenta
In: Gérmen. Lisboa: Poética, 2024, p. 90

21.10.24

Até quando?

 



Recuam até ao lodo do silêncio.
Sangue engolido devagar.
Escorregadio como algas.
Difuso e seco como o medo.

São palavras sempre sujas
as que lhes agridem o corpo
e lhes laceram a alma.

A fuga é o único recurso
mesmo que o desenredo
seja a solidão ou a morte
tantas vezes inevitável.
Até quando?

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 51

14.10.24

Quando os relâmpagos estremecem a terra

A.E.E.

O movimento nodoso dos dedos 
resvala para uma irremediável timidez 
nesta errância de palavras confidentes. 
Com as mãos vazias, desarmadas, 
em desconforto, em alarme, quase faleço 
perto das trepadeiras presas em estacas 
quando os relâmpagos estremecem a terra em pousio. 
A lua enchente alumia as colmeias 
varridas pelo sobressalto de águas subterrâneas. 
Um escorpião arrasta-se pela margem de todos os sustos. 
Escondo as dores no estreitamento dos dias, 
e aprendo com os bichos a usar as mantas da noite 
porque sinto o sopro dolorido do vento 
a rasgar a intimidade das nuvens. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.47

7.10.24

Em uníssono



Indagamos, em uníssono, 
o avesso dos dias
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.

Graça Pires, reeditado

30.9.24

Música

 

Pedro Pires



Convoco o rumor das teclas de um piano
em sonata de beethoven.
E ouço o grito intenso do silêncio
o vento enlouquecido
um inaudível lamento
uma luz no secreto rosto de deus.

É o coração seduzido
pela sublimidade da música.
Como se fora água pura
em diálogo com a terra fecundada.
Como se fora prece
a implorar o valimento da vida.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023. p. 15


23.9.24

Morte


                                                                   Em memória dos que pereceram nos  incêndios



Identificamos de forma evidente
os detalhes secretos
em que os corpos
sangram cinza sobre a terra.

É o eco mudo de um futuro
em queda ou em voo
concha de vento
vidro frangível
corda imperfeita da vida.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 61

16.9.24

Serão de lume as palavras?

             

Susan Derges



A lua cheia incide-me inteira sobre a face.
As margens das páginas incendeiam-se. 
Serão de lume, as palavras?
Em movimento estranho, 
a dosear-se de ritmos, 
a escrita cria seu próprio grito silente.
Na ressonância do silêncio 
apanho-me em flagrante. Ilicitamente. 
Como num pecado original. 
E dentro de mim me escondo, 
indiferente ao deslize de cada hora.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 64

8.9.24

Atrás do vento

 

Katharina Jung



Ainda que não sejam lineares
os caminhos percorridos
já esquecemos aquilo
que em cada etapa
foi tropeço queda
viagem inacabada.

Fincamos os pés sedentários
em avanços e recuos
até que o movimento da vida
nos torna viajantes e aventureiros
sem recear distâncias.

Às vezes corremos atrás do vento
numa espécie de estonteamento
sempre próximos do começo
dos primeiros passos
à procura do lugar onde fica
a casa em que nascemos.

Graça Pires

De O improviso de viver, 2023, p. 62

2.9.24

Em seara alheia




Lembras-te dos tempos azuis
intermináveis e belos?
Inesquecíveis nos corpos
um só momento e o azul
bêbado de nós;
eram tempos de florir
de partir à descoberta
de dizer sim quando foi sim
a palavra de dizer.
Lembras-te dos tempos azuis
no embalo terno e ousado
dos nossos mistérios?
A um passo
da curva acentuada
a estrada desnivela-se
e afunda-se pela montanha.
No malabarismo de viver
estranham-se ausências
revelam-se sombras
desaparece a sonoridade.
Consegui voltar:
incólume.

Paula Banazol de Carvalho
In: A tempo do tempo. - Lisboa: Poética, 2024, p. 16

26.8.24

Com uma praia na lembrança

 

Manuel Fazenda Lourenço


Percorro os verões antiquíssimos
quando era absoluta a cintilação do dia.

Havia uma praia com areia muito fina
Havia toldos brancos às riscas azuis.
Havia o prego e as cinco pedrinhas
que divertiam as meninas.
Havia o som de risos e brincadeiras.

Contra o vento flutuava o rigor da luz
em meu olhar tão cheio de candura.

Os rapazes faziam do jogo da bola
o gozo e o pretexto de espreitar
as mais distraídas a vestir o fato de banho.

O mar com ondas sempre enormes
era demasiado belo não fora o banheiro
a enfiar-me a cabeça na rebentação
como num cerco escuro
indiferente ao meu berreiro.
A água que eu engolia fazia descer a maré
tinha a certeza porque depois
a ondulação acalmava dilatando o areal.

E o sol sem pressa tornava os dias
mais longos e memoráveis.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 46   

29.7.24

A ociosa lentidão dos sentidos

 

Michael Bilotta 



Retomo pedaços de uma narrativa
em que me reconheço despida de artifícios. 
Distancio-me dos vícios morfológicos 
sufocando os gemidos do verbo. 
Deixo que me pertença 
a ociosa lentidão dos sentidos. 
Antigas convicções, 
entrecruzadas por conquistas e desastres, 
alastram como uma verdade 
primordial diante de mim, 
fragilizada pela fuga do tempo, 
pela completude da vida.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 79

Minhas Amigas e meus Amigos, vou fazer uma pausa. Voltarei a 26 de Agosto. Desejo que passem uns dias tranquilos, com saúde, paz e conforto.

Beijinhos.


22.7.24

Avistamento

                                            

Anne Packard


No meio do areal
a pulsação da mulher
impelia o veleiro.
 
Em antiquíssima visão
ulisses avistava ítaca.
Sentia o coração de penélope
e o faro do cão
quase exauridos de esperar.
 
Talvez pareça dissonante invocar
homero nesta página.
Come se fosse possível escapar
de um malogro inevitável
ou culpar o primeiro silêncio
pela inabilidade da voz inicial.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 29

15.7.24

Inclino o corpo sobre a terra

Jean-François Millet


Inclino o corpo sobre a terra 
para tocar o milho maduro. 
Tenho um arado impresso nos braços. 
Por isso a minha língua tem um sabor terroso. 
Um vegetal aroma esboça 
folhas de árvores em meus olhos,
íntimos das estações do ano. 
O mais luminoso verde 
invade a paisagem 
e um aceno inesperado fere-me as mãos 
como uma aflição ou um lamento 
de raízes em volta dos punhos. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 48

8.7.24

Em seara alheia

                     


Parecem maçãs rubras, as mães.
Sabem que cumprem o ofício das amoras: 
sangram para o interior. 
Depois de cada filho, compõem lentissimamente
o seu chão ainda incendiado pela vida.
Só existem filhos amados demoradamente
se escutarem o apelo vital
vindo das entranhas do coração.

Lília Tavares
In: Nas mãos a sede dos pássaros. Lisboa: Poética, 2024, p. 9

1.7.24

A imperfeição da luz

 

Manuel Fazenda Lourenço



No rigoroso itinerário da lembrança
a sombra de um lobo espera
instintivamente em teu olhar
que a montanha se erga intacta e branca.
A mesma que trouxeste da infância
e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

Contudo foi com um sorriso
deslumbrado e breve
que começaste a amar
a imperfeição da luz perto do mar
enquanto o verão
entornava julho no teu nome.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 30

24.6.24

Intacto azul

Instituto Português de Serigrafia


Nenhum vestígio de interdição 
na memória de outras quilhas, 
intacto azul onde os peixes voam 
e flutuam no suco das anémonas 
ou na liquidez dos olhos das gaivotas. 

Sou a rosa dos ventos 
plasmada no vazio 
de um cosmos oculto 
e acharei, de muito longe, 
uma praia de barcos ancorados. 

Graça Pires 
De Poemas, 1990, p. 49

Este poema faz parte do meu primeiro livro "Poemas" que, no dia 29 de Junho, faz 34 anos que foi editado.

17.6.24

Em seara alheia

    •  

3.

Ninguém sai ileso
de uma claridade prematura.

Este quarto,
insurrecta metáfora
que espreita
a grelha costal do ébano.

O corpo, alambique de harpas taciturnas.
A pele alumiada
pelas habilitações literárias do gume.

Caducou
a biografia de antídotos
que expatriava o limbo.

Ser agora um homem
na potência crucial da bruma.
Arquivo de mitologias nefastas.
Mapa sem alvéolos.
Hora de ponta
no espaço tumoral.

Alberto Pereira
In: Tarkovsky: o sacrifício. Costa da Caparica: The Poets and Dragons Society, 2024, p.68
Prémio Ulysses 2023

10.6.24

Noite

Silena Lambertini 



Em plena noite delineava-se no chão
a luz derramada pela lua.


Era fácil ver as minhas mãos 
propícias a qualquer sobressalto 
no chamamento dos afagos. 
Eu ouvia os meus pensamentos 
como uma suplicação. 

E a perturbação das estrelas em meu olhar 
provocava uma espécie de cegueira 
no canto dos olhos. 

Como se a noite me entrasse pela casa. 

Graça Pies 
De O improviso de viver, 2023, p. 27

3.6.24

O lugar definitivo do silêncio

Magdalena Russocka 

De modo inútil arremesso 
contra um muro de barro 
os pensamentos banais. 
Interrogo-me obsessivamente 
sobre o chão que me espera, 
sobre o pó que afagará 
o corpo que é meu, 
sobre o poder das trevas 
debaixo da terra, 
sobre o rumor dos cemitérios 
quando a lua cheia incide 
nas lápides e nas cruzes de pedra. 
A morte. Eco perpetuado 
em passos rigorosamente 
lentos e apressados. 
Farpa suspensa sobre o coração 
como um estigma. 
Lugar ausente de luz 
onde se cai sem aviso 
nem tempo nem idade. 
O lugar definitivo do silêncio. 
O derradeiro gesto
 a servir de limite ao perfil do rosto. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.74

24.5.24

Adeus, meu irmão, meu amigo

 


                                                Para o meu irmão Zé Pires, in memoriam (1952-2024)



Suspendeu-se o tempo em teu olhar 
tão cheio de silêncios.
Com a dor que sentimos
pudemos ver a mãe a segurar a tua mão
para que as sombras 
não te doessem nem te assustassem.
Levas contigo todos os abraços 
extraviados de ti.
Guardamo-los no coração 
e a eles nos abraçamos fortemente.
Queremos pensar que dormes 
como se fosses menino.
Acreditamos que serás a luz 
que atravessará a noite 
para nos deixar no peito 
a ternura que te pertencia.
Descansa em paz.

Graça Pires, 24 Maio 2024
                           

 Voltarei quando puder

20.5.24

Em seara alheia

 





III - 2


Trazes cravado no ventre o amor como um búfalo
uma memória-casa que cresce rente ao rumor dos
   moinhos
Trazes o mar / uma pétala / um saguão de Julho
e vazados os olhos em afluentes de espuma

Trazes aberta como um pão
a construção da infância
e no coração / uma casca de tília / uma flor sepulcro

Trazes / no fim do Verão
uma meda de lume
um molusco / uma falésia-gávea
e
campainha-templo de pedra em calma
habitado de estorninhos e de diurnos cálices de vento
distante da cal e da ferrugem
o escafandro-tempo do poema

José Pedro Leite
In: Ascensor de sombras. Lisboa: Poética, 2022, p. 66


13.5.24

Sedução azul

 

António Cravo


                                                                                                 Para António Cravo


Quando tudo parece sitiar o coração

há barcos que passam sobre o vigor

da voz a resgatar aqueles

que soçobraram nos sonhos.

 

E os barcos fazem-se pássaros de fuga 

abrindo o espaço à sedução azul.

 

É de pura maresia o ar que se respira

como se houvesse um sopro cristalino

a roçar a amarração de âncoras libertadas.


Graça Pires

De O improviso de viver, 2023. p. 43